Boaventura: A nova “Tese onze”, de Marx

Boaventura de Sousa Santos atualiza, diante dos desafios políticos do século XXI, a canônica "Tese onze contra Feuerbach" escrita por Karl Marx em 1845.

Por Boaventura de Sousa Santos.

Karl Marx escreveu em 1845 as Teses sobre Feuerbach. Escrito logo depois dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o texto constitui uma primeira formulação do seu propósito de construir uma filosofia materialista centrada na práxis transformadora, radicalmente distinta da que então dominava e de que era expoente máximo Ludwig Feuerbach. Na célebre tese onze, a mais conhecida de todas, declara: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo.” (A ideologia alemã, p. 535) O termo “filósofos” é usado num sentido amplo, como referência aos produtores de conhecimento erudito, podendo incluir hoje todo o conhecimento humanista e científico considerado fundamental por contraposição ao conhecimento aplicado.

No início do século XXI esta tese levanta dois problemas. O primeiro é que não é verdade que os filósofos alguma vez se tenham dedicado a contemplar o mundo sem que a sua reflexão tenha tido algum impacto na transformação do mundo. E mesmo que alguma vez isso tenha ocorrido, deixou de ocorrer com a emergência do capitalismo ou, se quisermos um termo mais abrangente, com a emergência da modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVI. Os estudos sobre a sociologia do conhecimento dos últimos cinquenta anos foram concludentes em mostrar que as interpretações do mundo dominantes numa dada época são as que legitimam, possibilitam ou facilitam as transformações sociais levadas a cabo pelas classes ou grupos dominantes.

O melhor exemplo disso é a concepção cartesiana da dicotomia natureza – sociedade ou natureza-humanidade. Conceber a natureza e a sociedade (ou a humanidade) como duas entidades, duas substâncias na terminologia de Descartes, totalmente distintas e independentes uma da outra, tal como acontece com a dicotomia corpo-alma, e construir nessa base todo um sistema filosófico é uma inovação revolucionária. Choca com o senso comum, pois não imaginamos nenhuma actividade humana sem a participação de algum tipo de natureza, a começar mesmo pela capacidade e actividade de imaginar, dada a sua componente cerebral, neurológica. Aliás, se os seres humanos têm natureza, a natureza humana, será difícil imaginar que essa natureza não tenha nada a ver com a natureza não- humana. A concepção cartesiana tem obviamente muitos antecedentes, dos mais antigos do Velho Testamento (livro do Génesis) até aos mais recentes do seu quase contemporâneo Francis Bacon, para quem a missão do homem é dominar a natureza. Mas foi Descartes que conferiu ao dualismo a consistência de todo um sistema filosófico.

O dualismo natureza-sociedade, nos termos da qual a humanidade é algo totalmente independente da natureza e esta é igualmente independente da sociedade, é de tal maneira constitutivo da nossa maneira de pensar o mundo e a nossa presença e inserção no mundo que pensar de modo alternativo é quase impossível, por mais que o senso comum nos reitere que nada do que somos, pensamos ou fazemos pode deixar de conter em si natureza. Porquê então a prevalência e quase evidência, no plano científico e filosófico, da separação total entre natureza e sociedade? Está hoje demonstrado que esta separação, por mais absurda, foi uma condição necessária da expansão do capitalismo. Sem tal concepção não teria sido possível conferir legitimidade aos princípios de exploração e de apropriação sem fim que nortearam a empresa capitalista desde o início.

O dualismo continha um princípio de diferenciação hierárquica radical entre a superioridade da humanidade/sociedade e a inferioridade da natureza, uma diferenciação radical porque assente numa diferença constitutiva, ontológica, inscrita nos planos da criação divina. Isto permitiu que, por um lado, a natureza se transformasse num recurso natural incondicionalmente disponível para ser apropriado e explorado pelo homem para seu exclusivo benefício. E, por outro lado, que tudo o que fosse considerado natureza pudesse ser apropriado nos mesmos termos. Ou seja, a natureza em sentido amplo abrangia seres que, por estarem tão próximos do mundo natural, não podiam ser considerados plenamente humanos. Assim se reconfigurou o racismo para significar a inferioridade natural da raça negra e, portanto, a “natural” conversão dos escravos em mercadorias. Esta foi a outra conversão de que o Padre António Vieira nunca falou mas que está pressuposta em todas as outras de que falou brilhantemente nos seus sermões. A apropriação passou a ser o outro lado da super-exploração da força de trabalho. O mesmo aconteceu com as mulheres ao se reconfigurar a inferioridade “natural” das mulheres, que vinha muito detrás, convertendo-a na condição da sua apropriação e super-exploração, neste caso consistindo nomeadamente na apropriação do trabalho não-pago das mulheres no cuidar da família. Este trabalho, apesar de tão produtivo quanto o outro, foi convencionalmente considerado reprodutivo para poder ser desvalorizado, uma convenção que o marxismo não enjeitou. A partir de então, a ideia de humanidade passou a coexistir necessariamente com a ideia de sub-humanidade, a sub-humanidade dos corpos racializados e sexualizados. Podemos, pois, concluir que a compreensão cartesiana do mundo estava envolvida até à medula na transformação capitalista, colonialista e patriarcal do mundo.

À luz disto, a tese onze sobre Feuerbach levanta um segundo problema. É que para enfrentar os gravíssimos problemas do mundo de hoje – dos chocantes níveis de desigualdade social à crise ambiental e ecológica, ao aquecimento global irreversível, desertificação, falta de água potável, desaparecimento de regiões costeiras, acontecimentos “naturais” extremos, etc. – não é possível imaginar uma prática transformadora que resolva estes problemas sem uma outra compreensão do mundo. Essa outra compreensão tem de resgatar a um novo nível o senso comum da mútua interdependência entre a humanidade/sociedade e a natureza, uma compreensão que parta da ideia de que, em vez de substâncias, há relações entre a natureza humana e todas as outras naturezas, que a natureza é inerente à humanidade e que o inverso é igualmente verdadeiro, que é um contrassenso pensar que a natureza nos pertence se não pensarmos que, reciprocamente, pertencemos à natureza.

Não vai ser fácil. Contra a nova compreensão e, portanto, nova transformação do mundo militam muitos interesses bem consolidados nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos. Como tenho insistido, a construção de uma nova compreensão do mundo resultará de um esforço colectivo e epocal, ou seja, ocorrerá no bojo de uma transformação paradigmática da sociedade. A civilização capitali sta, colonialista e patriarcal não tem futuro, e o seu presente dá de tal modo testemunho disso que ela só prevalece por via da violência, da repressão, das guerras declaradas e não declaradas, do estado de excepção permanente, da destruição sem precedentes do que continua a designar como recurso natural e, portanto, disponível sem limites. O meu contributo pessoal nesse esforço colectivo tem consistido na formulação do que designo por epistemologias do sul. Na minha concepção, o sul não é um lugar geográfico, é uma metáfora para designar os conhecimentos construídos nas lutas dos oprimidos e excluídos contra as injustiças sistémicas causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, sendo que muitos dos que constituem o sul epistemológico viveram e vivem no sul geográfico. Estes conhecimentos nunca foram reconhecidos como contributos para uma melhor compreensão do mundo por parte dos titulares do conhecimento erudito ou académico, seja ele filosofia ou ciências sociais e humanas. Por isso, a exclusão desses grupos foi radical, uma exclusão abissal decorrente de uma linha abissal que passou a separar o mundo dos plenamente humanos, onde “só” é possível a exploração (a sociabilidade metropolitana), do mundo dos sub-humanos, populações descartáveis onde é possível a apropriação e a super-exploração (a sociabilidade colonial). Uma linha e uma divisão que prevalecem desde o século XVI até hoje. As epistemologias do sul procuram resgatar os conhecimentos produzidos do outro lado da linha abissal, o lado colonial da exclusão, de modo a poder integrá-los em amplas ecologias de saberes onde poderão interagir com os conhecimentos científicos e filosóficos com vista a construir uma nova compreensão/transformação do mundo. Ora esses conhecimentos, até agora invisibilizados, ridicularizados, suprimidos, foram produzidos, tanto pelos trabalhadores que lutaram contra a exclusão não abissal (zona metropolitana), como pelas vastas populações de corpos racializados e sexualizados em resistência contra a exclusão abissal (zona colonial). Ao centrar-se particularmente nesta última zona, as epistemologias do sul dão especial atenção aos sub-humanos, precisamente àqueles e àquelas que foram considerados mais próximos da natureza. Ora os conhecimentos produzidos por esses grupos, pese embora a sua imensa diversidade, são estranhos ao dualismo cartesiano e, pelo contrário, concebem a natureza não-humana como profundamente implicada na vida social-humana, e vice-versa. Como dizem os povos indígenas das Américas, “a natureza não nos pertence, nós pertencemos à natureza”. Os camponeses de todo o mundo não pensam de modo muito diferente. E o mesmo acontece com grupos cada vez mais vastos de jovens ecologistas urbanos em todo o mundo.

Isto significa que os grupos sociais mais radicalmente excluídos pela sociedade capitalista, colonialista e patriarcal, muitos dos quais foram considerados resíduos do passado em vias de extinção ou de branqueamento, são os que, do ponto de vista das epistemologias do sul, nos estão a indicar uma saída com futuro, um futuro digno da humanidade e de todas as naturezas humanas e não-humanas que a compõem. Sendo parte de um esforço colectivo, as epistemologias do sul são um trabalho em curso e apenas embrionário. No meu próprio caso, penso que até hoje não dei conta de toda a riqueza analítica e transformadora contida nas epistemologias do sul que tenho vindo a propor. Tenho salientado que os três modos principais de dominação moderna – classe (capitalismo), raça (racismo) e sexo (patriarcado) – atuam articuladamente e que essa articulação varia com o contexto social, histórico e cultural. Mas não tenho dado atenção suficiente ao facto de este modo de dominação assentar na dualidade sociedade/natureza, e de tal modo que sem a superação desta dualidade nenhuma luta de libertação poderá ter êxito.

Em face disto, a nova tese onze devia ter uma formulação do tipo: “os filósofos, filósofas, cientistas sociais e humanistas devem colaborar com todos aqueles e aquelas que lutam contra a dominação no sentido de criar formas de compreensão do mundo que tornem possível práticas de transformação do mundo que libertem conjuntamente o mundo humano e o mundo não-humano”. É muito menos elegante que a tese onze original, mas talvez nos seja mais útil.

* Publicado originalmente no portal Carta Maior, no dia 08/01/2018

***

Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, 15 de Novembro de 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Seu livro mais recente é A difícil democracia: reinventar as esquerdas (Boitempo, 2016). Pela Boitempo, publicou também Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social (2007). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

9 comentários em Boaventura: A nova “Tese onze”, de Marx

  1. Cláudio Marinho // 10/01/2018 às 2:13 am // Responder

    Estou lendo essa baboseira comunista depreciando o capitalismo. Capitalismo este que propiciou que os “gênios humanistas” tivessem suas ideias super divulgadas graças à Internet, por sua vez, filha do capitalismo. Sem capitalismo de que viveriam os divulgadores de mimimismo? Agradeçam, pois, a ele o grande vilão, o monstruoso capitalismo.

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    • Não é graças ao capitalismo que houve desenvolvimento nesse mundo, a inventividade humana é natural em nós, não graças há um sistema econômico-social. O capitalismo trouxe sim uma nova dinâmica aos processos de desenvolvimento civilizatório, até Marx admitia a pulgancia do sistema, mas suas qualidades não se sobrepõem aos seus defeitos e uma nova ordem sócio – econômica é necessária para o progresso humano.

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  2. Não li a tese original, não posso opinar se a proposta desestrutura toda a tese em si, mas confesso que creio que se Marx estivesse vivo, ele mesmo mexeria em muita coisa dele mesmo, isso é natural, sempre para complementar ou corrigir um sentido ou outro, mas acho que o que importa é a essência daquilo que se quer dizer aos outros, de uma roupagem ou linguagem diferente, mais aprimorada ou não, acho que Marx, de onde estiver, não se ofenderia com propostas de reformulação, desde que combatendo o que sempre combateu: a exploração do homem pelo homem.

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  3. Não há dicotomia , não há separação em duas partes distintas , estanques . A dialética não chegou a Boaventura , como se vê pelo seu texto de conceção filosófica idealista e presunçoso. Um pouco de ” água benta “, não lhe faria mal. Carlos Vale

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  4. Primoroso artigo do Boaventura, as questões filosóficas moldam nossa percepção do mundo. Na minha opinião Marx deveria achar que os esforços dos filósofos até então não foram suficientes para uma revolução ou ele quis fazer apologia comunista mesmo.

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  5. PT sempre precisou de viver de marketing político poderosíssimo:
    para disfarçar o tanto que é barango e cafona! É o Kitsch na política.

    O Último e Derradeiro Mandamento. Ei-lo:

    O Décimo Mandamento:

    10º.
    Não ouvirás lixo cultural do baranguérrimo petismo da época
    decadente lula-dilma, como “sertanejo universitário”
    (criado e inventado nessa época), criado no próprio inferno.
    Enquanto este povão deseducado e inculto não aprender a votar,
    sempre haverá tetas pra todos nós e música bem ruim e
    extremamente barangona pro povão imbeciloide.
    Mamemos em paz e que outros senhores petistas nos acompanhem.
    ________
    “Escreve as coisas que tem
    visto, e as que são, e as que
    depois destas hão de acontecer.”
    (Apocalipse, livro derradeiro da Bíblia).
    —-
    Como é extremamente barangão o lula!
    UM TOSCO.
    Um tosco, não. Um hiper tosco.

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  6. José Santos // 29/11/2018 às 11:08 pm // Responder

    muito bom

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  7. Justino Sousa Junior // 28/07/2020 às 10:56 am // Responder

    Não é à toa que B. S. Santos é um dos intelectuais adorados pela esquerda brasileira e latinoamericana. Essa esquerda que tem como reivindicação máxima a renda mínima e como tarefa principal a defesa e sustentação da ordem liberal-burguesa democrática e republicana no horizonte da sociedade capitalista. O antimarxismo do senhor Boaventura vem tendo que se disfarçar uma vez que diante das crises sociais e econômicas recentes não era mais conveniente manter inalterada aquela velha ladainha hostil para com os autores marxistas, designados pelo “mestre” português como mausoléus. Atualmente BSS bate menos e disfarçadamente no marxismo, mas seu antimarxismo é sempre notório, indisfarçável. Seu esforço por “atualizar” uma frase de Marx, num recorte mínimo, evitando qualquer contextualização da mesma, revela uma tentativa não muito honesta de passar sutilmente como superior sua visão sobre a sociedade contemporânea, seus desafios e alternativas. No final das contas, para BSS o marxismo não pode ser tomado como grande referência das lutas emancipatórias, por isso deve ser combatido, ainda que disfarçadamente (BSS, por acaso, “modestamente”, parece ser a grande referência intelectual dos oprimidos; para ele é do Sul que virá a grande onda da transformação (quanto a isso, nada contra a não ser um certo tom demagógico para com as plateias acadêmicas periféricas); mas, essa onda transformadora não assenta como pensavam os “mecanicistas” e “economicistas” fundamentalmente na exploração do trabalho, nas relações práticas de produção da existência, mas em formas de opressão “desprezadas” pelo marxismo – os novos protagonistas são índios, negros e mulheres; por último, mas não menos importante vem o destaque dos saberes como a grande força transformadora. A propósito, Boaventura não sabe – ou finge não saber – nada sobre como Marx e Engels pensam o metabolismo homem x natureza e insiste em identificar o marxismo sem nenhuma ressalva à tradição moderna “malvadona”. Para terminar: o grande vilão da direita e ultra direita continua sendo o marxismo, qual seria a razão disso? Por que continuam tão preocupados com o “mausoléu”? Por que não elegem a epistemologia de BSS com o grande inimigo a ser combatido? Teria essa escolha a ver com os diferentes graus de radicalidade crítica desses “paradigmas”?

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