O silêncio dos inocentes

15.09.11_Mauro Iasi_O silêncio dos inocentes

Fotografia de Ian Maenfeld (Jornalistas Livres)

Por Mauro Luis Iasi.

Em resposta à coluna de Emir Sader, “Dilemas da intelectualidade latinoamericana“.

Uma vez mais o professor Emir Sader parece estar preocupado com a produção intelectual latino-americana, mais precisamente com a aparente falta de correspondência entre a produção intelectual e os processos políticos “pós-neoliberais” (segundo o sociólogo brasileiro).

Para Sader, outros momentos (como as décadas de 1950 e 1960 no Brasil) foram marcados por intensa produção teórica sobre os processos em curso, com significantes reflexões, como pode se comprovar pela produção de autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Milton Santos e Ruy Mauro Marini, entre outros.

Entretanto, diante dos atuais processos políticos em curso na America Latina, qualificados como progressistas e na contracorrente da hegemonia neoliberal, presenciaríamos uma espécie de silêncio intelectual. A hipótese de Sader é expressa da seguinte maneira:

Uma parte importante da intelectualidade latino-americana não está engajada em apoiar esses governos a resolver dilemas atuais e projeções de futuro. Alguns se isolam dos processos históricos concretos, ao assumir uma postura intelectualista, incapaz de captar as novidades da realidade concreta, tornando-se impotentes para contribuir para os processos políticos concretos.

Duas questões de imediato se apresentam.  Se uma parte assim procede, existiria outra parte que deveria estar contribuindo na direção da compreensão desejada pelo autor. Cabe perguntar: onde estaria esta valiosa reflexão? Quem são seus representantes ilustres? Em segundo lugar, o que determinaria esta “incapacidade” de captar a “realidade concreta” que levaria estes intelectuais à impotência? O autor tem uma explicação provisória para responder à sua tese: alguns intelectuais ficariam “encerrados nos muros das instituições acadêmicas, voltados para as problemáticas dissociadas da realidade externa, presos às dinâmicas institucionais”.

É bem difícil analisar a produção intelectual de uma época à quente, isto é, no momento mesmo em que ela ocorre. Muitas produções não alcançam a dimensão e a repercussão que lhes cabe em sua própria época e são, por assim dizer, destiladas e refinadas pelo tempo, até que o devir revela a pertinência daquilo que se afirmava. A própria lista apresentada por Sader tem bons exemplos disso. Se há autores que em sua época foram reconhecidos, como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado, por exemplo, o mesmo não ocorreu com Caio Prado Jr, Florestan Fernandes e, menos ainda, Ruy Mauro Marini. Seria bom destacar que parte dos autores citados se colocaram claramente contra a corrente, criticando e se chocando com aquilo que Caio Prado Jr. chamava de “verdades consagradas” – e pagaram um preço por isso.

O princípio que move o autor está correto. Em nossa perspectiva, fundada no marxismo, os intelectuais têm a responsabilidade de voltar seus olhos para o real e incidir sobre ele, são parte do movimento vivo da luta de classes e evitam as confortáveis armadilhas da neutralidade axiológica ao gosto da sociologia compreensiva weberiana ou da “objetividade” funcionalista. Da mesma forma, o risco do isolamento institucional (eu não diria apenas acadêmico institucional, pois há outras instituições com potencial de aprisionamento do pensamento igual ou superior ao presente na academia) é um fator concreto de limitação no sentido do desenvolvimento de um pensamento crítico.

No entanto, nesta direção tenho uma boa e uma má notícia para Emir Sader. Há no Brasil uma intensa e significativa produção teórica que se põe a refletir sobre os processos políticos em curso. Certamente há também na America Latina, mas, uma vez que o autor se detêm no Brasil, farei o mesmo. 

Vemos no período mais recente um renovação do pensamento crítico, não apenas em seminários e simpósios acadêmicos de grande qualidade, como na produção intelectual da esquerda brasileira. Há sempre o risco de deixar de fora muita coisa relevante, no entanto, apenas no intuito de exemplificação podemos citar a relevante produção de Ricardo Antunes, da Unicamp, sobre o mundo do trabalho em franca oposição e resistência contra a ofensiva dos que alegavam o fim da determinação do trabalho, da lei do valor e da centralidade das classes nos processos políticos. Também relevantes são os estudos de Virgínia Fontes sobre o Capital Imperialismo, pesquisadora infelizmente tão atacada pelo pensamento pós-moderno que domina a área de História, trincheira na qual conta com colegas de igual calibre como Osvaldo Coggiola (USP) ou Marcelo Badaró (colega de Virgínia na UFF). Podemos somar a estes estudos relevantes o professor da UFSC Paulo Tumolo e seus estudos sobre educação e sobre o movimento sindical, assim como estudos pioneiros de Antônio Ozaí (hoje na Universidade Estadual de Londrina), assim como as contribuições de Ruy Braga, Ricardo Musse e Lincoln Secco na USP; Antônio Carlos Mazzeo e Marcos Del Roio na Unesp – nesta instituição devemos lembrar os pertinentes estudos de Giovanni Alves. E tantos outros, em diversas instituições, entre os quais me incluo, com meus estudos sobre consciência de classe e sobre a trajetória política do PT no período histórico que nos coube viver.

Há no Serviço Social, o campo que me acolheu carinhosamente, uma produção igualmente significativa e que incide muito além da área profissional da qual parte. Temos as clássicas reflexões do camarada José Paulo Netto, de Marilda Iamamoto, de Carlos Nelson Coutinho, de Maria Inês de Souza Bravo e de toda uma geração de grande qualidade teórica e política como Elaine Behring (UERJ), Maria Lucia Durighetto (UFJF), Evilásio Salvador (UNB), Sara Granemann (UFRJ) e Beatriz Abramides (PUC SP), entre tantos outros.

Ainda poderíamos falar de novos intelectuais que apresentaram seus trabalhos bem recentemente como Rodrigo Castelo (Unirio) e seu estudo sobre o social-liberalismo, Mirla Cisne (UFRN) e seu brilhante estudo sobre Gênero e relações sociais de sexo, Morena Marques (ex-UNB, hoje Unirio) e seu estudo sobre a Revolução Brasileira, uma análise da estratégia democrático-popular, assim como a belíssima tese de doutoramento de Valter Pomar, defendida na USP, que estuda especificamente o programa econômico dos governos petistas.

Poderíamos ir muito mais longe neste levantamento, mas podemos parar por aqui pois, além da qualidade de suas contribuições, há algo comum entre estes intelectuais citados. Todos eles, evidente que com posturas e posicionamentos diversos, refletiram em algum momento sobre os processos políticos em curso, especificamente sobre algum momento dos 12 anos de governos petistas ou processos a eles relacionados. Outra característica é significativa para a problemática que discutimos: nenhum deles pode ser considerado um intelectual que se “encerrou nos muros das instituições acadêmicas”; são, em diferentes graus, intelectuais militantes, comprometidos com a luta de classes e com claro compromisso político.

Há ainda outra característica: refletem sobre os processos políticos, como diversos posicionamentos, de apoio ou de oposição aos governos petistas, mas todos eles souberam manter a necessária perspectiva crítica e reflexiva essencial à boa produção teórica no campo do marxismo. Mesmo aqueles com compromissos partidários claros, como é o caso de Valter Pomar, Lincoln Secco e Ricardo Musse (e poderíamos incluir aqui Márcio Pochmann, Marilena Chauí e André Singer) não perderam a objetividade que lhes permite ver as contradições dos processos em curso e seus evidentes limites, fugindo do servilismo que confunde apoio político com rendição ao governismo e aos cálculos do pragmatismo político.

Neste sentido, a boa notícia é que se Sader busca uma produção teórica que reflita sobre os “processos reais”, ela existe e é de qualidade e vasta. Talvez o que Sader não encontre, e seu texto revela seu mais puro desejo, é uma produção intelectual que está “engajada em apoiar esses governos”, talvez pelo simples fato de que esse governo (pelo menos no caso do Brasil) se apresente cada vez mais indefensável para aqueles que defendem os trabalhadores.

Um “deslize” interessante que vemos na coluna de Sader é que ele centra a reflexão necessária dos processos políticos por suas contradições “com o movimento do capitalismo em escala global”. Ora, evidente que isso é importante, ainda que muito idealizada e cevada de subjetivismos otimistas, mas… suas próprias contradições internas não seriam essenciais para a reflexão que procura “contribuir para os processos políticos concretos”? Se sobre a análise crítica (não importa se de apoio ou de oposição ao governo) temos excelentes exemplos de boas contribuições, é no campo do governismo arrogante, rebaixado e intolerante que vemos um enorme silêncio sobre as contradições reais que se apresentam nos processos concretos.

Não há nenhum problema em um intelectual apoiar um governo de sua preferência, é um direito de qualquer um. No entanto, a questão é se este apoio faz com que sua produção deslize da análise da “realidade concreta” para a pura justificativa laudatória que esconde e obscurece as contradições que precisam ser compreendidas. Como nos alertou Silvio Rodriguez em seu último trabalho, lembrando a importante contribuição de nosso comandante: “Dijo Guevara El humano, que ningún intelectual debe ser asalariado del pensamiento oficial”.

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

18 comentários em O silêncio dos inocentes

  1. Azilde Andreotti // 11/09/2015 às 7:02 pm // Responder

    Eu incluiria Vladimir Safatle.

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  2. perfeito! Só acho que a professora Marilena Chauí não conseguiu superar seu comprometimento partidário.

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  3. Antonio Tadeu Meneses // 11/09/2015 às 9:47 pm // Responder

    Genial o artigo, considero um ‘tapa de luva’ mas com muita classe em todos aqueles que “são assalariados do pensamento oficial” e reclamam da falta de apoio da intelectualidade brasileira, também, com tantos erros do governo fica difícil.
    Mas mesmo assim, intelectuais brasileiros, lançam uma campanha nacional para impedir que a demência neoliberal destrua a Petrobras, paralise o Brasil, interrompa obras estratégicas e gere um furacão de desemprego e calote salarial nos canteiros do PAC e do pré-sal. O Emir Sade sabe disso por que também subscreveu a campanha.

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  4. No campo da Educação, aumenta aí o rol: Luis Carlos de Freitas, Demerval Saviani e Milton Duarte…

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  5. Carlos Jurandir // 12/09/2015 às 6:09 pm // Responder

    A questão é que existem tarefas concretas, problemas que interferem na vida de milhões de brasileiros e até no futuro do país, que o PCB precisa encarar como partido. A discussão fica para depois. A reforma política, por exemplo, a questão da redução da maioridade penal, o projeto contra o pré-sal, a precarização do trabalho, a questão da demarcação das terras indígenas, entre outras, das quais não podemos nos omitir por questões conceituais. E é o que está acontecendo. Não importa se a fase do capitalismo é essa ou aquela, o problema é que temos que brigar pela melhoria da vida do povo brasileiro, ou não seremos marxistas. A verdade é que as coisas chegaram onde estão inclusive por nossa omissão. E naquela lista faltam Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. (a) Carlos Jurandir.

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    • Olá,
      Como não sou cristão, não carrego culpas que não são minhas. Não acredito que nem pessoalmente, nem no que tange meu partido tenhamos nos omitido (inclusive sobre os temas citados). Não posso concordar que haja uma separação entre a análise que define o momento do modo de produção capitalista, a estratégia é as táticas a serem desenvolvidas no âmbito imediato da política. Faltou muita gente, o Carlos Nelson eu cito, o Leandro certamente tem contribuições importantes e de ser lembrado. Um abraço.

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  6. Ponto final no assunto. Muito bom.

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  7. Antonio Elias Sobrinho // 12/09/2015 às 11:15 pm // Responder

    A primeira questão é se saber o que significa se posicionar sobre uma realidade concreta. Por acaso existe uma realidade abstrata e uma intelectualidade que seja neutra, desinteressada?
    Acho que os intelectuais de uma maneira geral, mesmo na academia, refletem e atuam numa realidade concreta, mesmo aqueles que negam e dizem abominar a política e a realidade que vivem.
    Estes, certamente não são alvo das opiniões nem de Emir nem de Mauro Iasi, e sim os considerados de esquerda, e mais especificamente marxistas,
    Do meu ponto de vista o que existe, de fato, é que, em virtude de uma desagregação muito forte das instituições e das entidades representativas, sobretudo dos trabalhadores, há uma repercussão nas análises e avaliações. Assim, as reflexões sobre o que chamam de interesse geral ou interesse público, fiquem muito à reboque dos interesses do poder vigente ou dos interesses particulares e corporativos.
    Por isso, acho, finalmente, que tudo isso dê a impressão de uma certa paralisia ou descompromisso.

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    • Oi Antônio,
      Sim, é verdade, existem intelectuais, inclusive não marxistas, com contribuições em diversas áreas do conhecimento e que lançam luzes a compreensão da formação social brasileira. Entretanto, a crítica aos chamados “Interesses corporativos” tem escamoteado um grande preconceito contra a pratica sindical, tão necessária nos dias de hoje. Mas, Antonio tem razão ao alertar que, em certos casos, o corporativismo é um viés que deforma a análise e temos que estar atento.

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  8. Mauro Luis Iasi // 13/09/2015 às 12:11 am // Responder

    O professor Antônio Ozaí é da Universidade Estadual de Maringá e não de Londrina como está no texto, desculpem nossa falha.

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  9. …cadê o PCB? Sumiu! Eis o ‘real’ do Mauro… só! Difícil dialogar com quem sequer está apto a isso e o PCB se colocou nesta condição.

    – mas avisem ao Mauro que os comunistas marxistas leninistas estão conversando entre si…algumas tendências prestistas, PCR, PCML, PCdoB, tendências do PT, etc…

    Abs

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    • Bom Jerônimo, bom que estejam conversando “entre si”, como disse Brecht uma vez, “não me atrapalhem estou preparando meu próximo erro”… quanto ao PCB, estamos trabalhando, nos organizando e, pelo jeito, ainda incomodando, que bom!

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  10. Sabia que ia ter que emendar o texto por esquecimentos. Vários amigos já me alertaram de muitos, como a imperdoável omissão de Valério Arcari. Da mesma forma meu amigo Motta me alerta sobre a lacuna sobre as contribuições do marxismo althusseriano e e me lembra com razão que “faltou muita gente que tem dado excelentes contribuições como João Quartim de Moraes, Armando Boito, Décio Saes, Lúcio Flávio Almeida, Marcio Bilharinho Naves, Carlos Henrique Escobar, Eginardo Pires”.
    Outros ainda serão lembrados, mas isso apenas reforça minha hipótese que boas análises sobre os processos políticos em curso não faltam.

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  11. Cada segundo me lembram de mais um… Companheiro Nildo Ouriques da UFSC… Sem dúvida.

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  12. Renato Prata Biar // 17/09/2015 às 12:24 pm // Responder

    Mauro, muito cuidado ao responder ao “intelectual” Emir Sader. Sabemos muito bem que, quando contrariado em suas posições governistas, ele tem, por hábito, convocar os membros da Gaviões da Fiel para agredir seus opositores; foi assim com os militantes do MTST. E, não satisfeito, ainda os chamou de vira-latas. Essa é a prática e a realidade concreta de quem acusa parte da esquerda de esconder-se e isolar-se atrás de um intelectualismo afastado dos processos políticos concretos.

    Renato Prata Biar

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  13. Mauro, de novo um belo texto. Pode incluir o Chico de Oliveira, Luis Carlos Scapi, Emilio Gennari? Abraços

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  14. izaias almada // 24/09/2015 às 12:03 pm // Responder

    Parabéns ao prof. Emir Sader, pois conseguiu, pelo visto, dar uma boa agitada no meio intelectual. E as ginásticas teóricas, muitas delas, não todas, são – quanto a mim – a constatação de que Sader tem muita razão no “puxão de orelhas” que dá. Uma das questões, inclusive, sequer foi respondida pelo autor e comentaristas: o silêncio sobre Venezuela, Equador, Bolívia, Uruguai, Argentina, Nicarágua (e mesmo Cuba), países que com a luta de seus povos mudaram o panorama social e econômico da América Latina nos últimos quinze anos pelo menos. O PT virou a “Geni” da moçada.

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