A alma revolucionária

Christian Dunker_A alma revolucionáriaPor Christian Ingo Lenz Dunker.

Tenho recebido objeções de que minhas ideias em torno da emergência de uma lógica de condomínio no Brasil são aplicadas de modo exclusivo aos condomínios de direita. Aceito parcialmente a crítica de que minha anatomia, ainda em curso, dos pensadores liberais, mesmo os liberais por subtração, deixa de lado os condomínios de esquerda.

Para entender o funcionamento da lógica segregatória na esquerda seria preciso renunciar, ainda que por um instante, ao bestiário atualmente disponível sobre a matéria. Suspender, mesmo que por caridade metodológica, a geografia liberal que postula que a própria divisão entre esquerda e direita é coisa da esquerda anacrônica, pois a validade deste plano “ideológico” foi desativada com queda do muro de Berlim, em 1989. Pois para muitos incautos, a divisão correta se daria entre os de esquerda e as “pessoas de bem”, ou melhor, entre os que “se metem com política” e os que estão realmente interessados em trabalhar e corrigir problemas do mundo. Como nos vinhos, só haveria dois tipos possíveis: os tintos e os ruins. A má nova para esta geografia ingênua é que a alma revolucionária pode não estar na esquerda constituída, assim como a esquerda visível nem sempre é a esquerda “verdadeira”. Sim, a esquerda caracteriza-se pela divisão de correntes, conflitos internos intermináveis, cisões e crises permanentes de identidade. Por isso sua anatomia não fica completa por partições simples como egoísmo ou altruísmo, conservadores ou progressistas.

Até o século XVIII acreditava-se que o coração dos seres humanos era composto por três e não por quatro câmaras interligadas. O mais incrível é que esta crença sobreviveu à descrição completa e correta do sistema circulatório proposta por William Harvey (1578-1657) bem antes disso. Esse é um exemplo clássico de como a ciência nem sempre avança por grande descobertas revolucionárias, mas pela alteração da organização geral do saber e seus modos mais genéricos de colocar e entender problemas. Antes que a medicina de Galeno (que prescrevia três câmeras para o coração humano) fosse questionada pela emergência da clínica moderna, tínhamos que aceitar esta incorreção como um mero detalhe necessário para salvaguardar o sistema. E o coração da anatomia de Galeno possuía três ventrículos simplesmente porque ele dissecou porcos e não seres humanos reais.

De certa forma a descrição corrente da alma do revolucionário está a nos apresentar um retrato galênico composto por três ventrículos, ligados a um espírito de “porco”, por um sistema circulatório pouco plausível. Ao contrário da alma liberal que se farta na guerra de todos contra todos, que justifica muros e mais muros, no interior dos quais os iguais enfim se reconhecerão, a alma revolucionária sofre com uma inadequação congênita a si mesma. Exceto quando assume a forma militante ela não está muito interessada em purificar os outros, mas antes a si mesma. E como ela é uma alma coletiva ela sofre de permanente tendência à autoamputação.

Ao contrário de nossos colegas liberais, que só conseguem perceber aglomerados de indivíduos reunidos circunstancialmente pelo acaso de seus interesses, os revolucionários definem-se pela insatisfação permanente com o uso do pronome “nós”. Enquanto os primeiros querem diminuir o tamanho do mundo em pequenos blocos de propriedades rentáveis, os segundos estão interessados em expandir o tamanho da alma comum e sua expressão coletiva.

Não se trata de “realismo” versus “idealismo”, nem de “pessimismo” versus “otimismo”. Há tolos em todos os lados. Assim como há um terceiro mundo no primeiro mundo, há um primeiro mundo no terceiro mundo. Não se trata tampouco de céticos versus crentes, nem de muçulmanos contra cristãos. A alma revolucionária pode assumir a compleição mais institucionalista ou um corte mais crítico, conforme se alimente ora de responsabilidade, ora de convicção. O que é característico de sua forma de vida é a insubmissão insatisfeita com a sua própria identidade e com o mundo tal qual ele se apresenta em sua tediosa banalidade. Como mostrou Michel Löwy, o anticapitalismo romântico é a fonte esquecida do pensamento de esquerda.

Quando se discute a reformulação da esquerda, quando se pondera o sentido do engajamento institucional, seja sob a forma de movimentos sociais e partidos, seja sob a forma governo, devíamos ter em conta dois fenômenos: nosso cansaço com a representação e nosso complexo de inautenticidade.

CANSAÇO COM A REPRESENTAÇÃO

O cansaço com a representação foi detectado por Ernesto Laclau na tese de que a ideologia não deve ser pensada como um sistema fixo de crenças ou disposições de ação, mas como uma articulação de discurso. Ou seja, as ideias mais libertárias e os valores mais sublimes facilmente se tornam fonte de opressão ou justificativa para os sistemas mais tirânicos e para as práticas mais conservadoras. No começo, certos significantes “flutuantes” são importantes para inscrever nossa demanda. Devemos contar com o fato de que, no segundo tempo, a síncope se revelará e descobriremos que nosso semelhante não estava nesta causa pela mesma causa que “nós”.

A alma revolucionária está sujeita ao cansaço da representação, este truque pelo qual ao nomear um representante, um delegado, uma instituição somos imediatamente demitidos do processo, instilados por dúvidas conspiratórias senão paranoicas. Este exílio faz nosso desejo de mudança degradar-se, graças à circulação política defeituosa, em processos impessoais, administrações corruptas e instâncias imorais. Portanto, não há porto seguro. Não basta sentar em cima de sua teoria, de seu título revolucionário, de seu cargo público para assegurar a criticidade ou pertinência de sua perspectiva ou de sua prática.

Os dois primeiros ventrículos da alma revolucionária dividem-se entre a teoria do Estado e a prática de governo, entre acadêmicos em suas torres de marfim e verdadeiros ativistas das ruas. É a bela alma hegeliana que será tão mais revolucionária quanto menos sujar suas mãos com as impurezas do mundo. É também o dilema relativo ao quanto de corrupção o coração do revolucionário aguenta antes de falecer de vergonha. Quantas concessões ao capitalismo podem ser feitas antes de nos envenenarmos sem volta. Até onde podemos caminhar juntos, porque assim tudo terminará bem? E onde começa a patologia do estar juntos para nos encobrir e nos defendermos de um inimigo comum, ainda pior?

Esta lógica de autosegregação da pureza pode levar qualquer um que trabalhe com lucro e dinheiro a ser um traidor da causa em potencial. Assim chegamos à tese da direita de que de fato, para querer mudar alguma coisa é preciso ser pobre e desinteressado, senão você é traidor. Nesta espécie de circulação por auto-catarse a alma revolucionária termina só e isolada, como o síndico em seu condomínio, só que por outros meios.

COMPLEXO DE INAUTENTICIDADE

O complexo de inautenticidade ataca as duas aurículas da alma revolucionária. Ele pode ser diagnosticado por meio do que Slavoj Žižek chamou de “fantasia ideológica”. O truque fundamental da fantasia é nos fazer acreditar que nós a conhecemos, que nós a dominamos, que nós podemos usá-la em nosso favor, quando, em geral, é ela que está nos usando para extrair um a-mais de gozo. Depois de anos tratada à base de elixires teórico-críticos, de experiências formativas e práxis alternativas a alma revolucionária cede à tentação da soberba veemente e acredita-se imune a tentações. Por isso o sentimento de impostura ou inautenticidade é a percepção sintomática, ainda que difusa, de que motivos insondáveis e pessoais rondam nossas opções políticas.

Nunca vi um liberal com pesadelos para saber se ele é tão radicalmente liberal quanto dele se espera e quanto ele mesmo se espera. Mas esta é uma fantasia endêmica na alma do revolucionário. Uma fantasia que ataca de duas maneiras.

Pela noite ela nos faz crer que nosso desejo não é puro, e que ser um mero executor da lei e da soberana purificação inspirada por Robespierre ainda assim não nos garante a filiação protetora que esperávamos, o sentimento inequívoco de que estamos do lado certo, do lado do bem, do lado de Rousseau contra Hobbes. Mas pela manhã esta experiência de culpa se voltará contra o outro, o macho branco, rico e predador, o porco capitalista de três câmaras na alma. Enquanto dormíamos aos engasgos e soluços ele aproveitava-se de nossas dúvidas para gozar um pouquinho a-mais. Enquanto ele caminha impávido nós nos degladiamos para descobrir quem é o mais revolucionário entre os revolucionários.

A fantasia ideológica da esquerda não tem a ver com o conflito de classes, mas com ressentimento de classe. Não tem a ver com diferença de gênero, mas com ressentimento de gênero. Esta esquerda culpada e denunciativa será também objeto de escárnio de nossos colegas liberais. Eles perceberão na polidez de sua correção política, na defesa fácil das causas indefesas a produção de um estilo de vida orientado para a “personalidade sensível” das classes altas e seus telhados de vidro.

Há uma antiga piada sobre psicanalistas lacanianos e seu modo prolífico e disruptivo de associação. Para fundar uma nova escola de psicanálise basta um psicanalista. Dois são suficientes para tornar tal empreendimento um acontecimento internacional. Mas se você tiver três lacanianos juntos é uma questão de tempo até isso se transformar em uma ruptura inconciliável, motivada pelos mais fundamentais antagonismos epistemológicos, éticos e metapsicológicos. É obviamente uma piada de “condomínio”, uma internal joke, que aponta para a falta de senso de tamanho, a extrema idealização de si mesmo e dos grupos humanos em que se toma parte, bem como o efeito desagregador das ideologias baseadas na autenticidade.

Assim como os trotskistas, guiados pelo ideal de “revolução permanente”, os lacanianos são conhecidos pela sua obsessão com a “formação permanente”. Assim como os seguidores da Quarta Internacional os lacanianos nutrem esta vigilância permanente com relação aos desvios e traições que se pode verificar no manejo dos textos e no estilo de transmissão. Assim como Stalin traiu Lenin, os pós-freudianos traíram Freud. Assim como os escolásticos defendem que a psicanálise é a clínica “limpinha” dos consultórios, os engajados argumentam que as estruturas descem às ruas. É por isso que os autênticos psicanalistas, como os autênticos revolucionários, tão só quanto sempre estiveram em sua relação com a causa, nunca poderiam realmente fazer parte de um clube que os aceitasse como sócios, pois o tal clube rapidamente incorreria em infidelidade de representação ou desvio ético.

A alma do revolucionário também cria condomínios, mas eles são formados por outros tipos de muro: muros de vidros ou de cristal. Seus síndicos são permanentemente apedrejados em atos expiatórios, em rituais de vergonha pública ou em provas e testemunhos de fé. A sua felicidade não é deste mundo, deste Alpha-mundo, mas do outro. A alma revolucionária pode ser uma alma errante rumo a um abismo inexistente, contudo ela ainda tem quatro câmeras (e não três) e respira, desde que ligada a um coração capaz de sonhar.

***

No dia 6 de julho, segunda-feira, Christian Dunker debaterá “Avanço conservador e formas de resistência“, com Guilherme Boulos em São Paulo. O evento é gratuito e aberto ao público em geral, sem necessidade de inscrição prévia. Saiba mais clicando aqui. Não perca!

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Christian Dunker debateu “Nacionalismo, identidade nacional e segregacionismo”, com Gilberto Maringoni e Jessé Souza no Seminário Internacional Cidades Rebeldes. Confira a gravação integral da mesa:

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Colabora também com o livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo/Carta Maior, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

5 comentários em A alma revolucionária

  1. Belo texto, um bom começo é algumas pistas para seguir.

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  2. Republicou isso em garapuvue comentado:
    excelente texto!

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  3. Eliana cunha // 25/06/2015 às 5:31 pm // Responder

    “Esse é um exemplo clássico de como a ciência nem sempre avança por grande descobertas revolucionárias, mas pela alteração da organização geral do saber e seus modos mais genéricos de colocar e entender problemas.” Chamam o síndico quando precisaríamos acreditar que não precisamos de síndicos e sim de coletivos comprometidos não com líderes mas sim com democracias diretas e cada vez mais participativas diferente de populismos e ” democratismos “, como temos assistido. Muito a construir! Vivemos um grande retrocesso nas organizações desde a estudantil às mais simples como dos condomínios.

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  4. Em primeiro lugar, preciso reconhecer que foi uma das melhores reflexões sobre o assunto que já li. Muito bom mesmo. Em segundo, gostaria de adiantar que só podemos considerar muito ingênuas as pessoas que não conseguiram observar os condomínios de esquerda. Me parece até que estas pessoas estão procurando evitar admitir a existência de tais condomínios. Talvez pelo fato de dizerem algo sobre elas mesmas que não gostariam de ter conhecimento ou consciência. Fica pro debate. Ademais, acredito que seria interessante adicionar um elemento à soma aqui apresentada, mais específicamente sobre uma passagem em que é “questionada” a hipótese dos “pesadelos liberais” em relação à própria radicalidade.

    Ainda que seja recente no Brasil, e aparentemente restrita às redes sociais, novos movimentos e vlogueiros liberais tem despertado uma certa disputa por quem está “defendendo verdadeiramente” o liberalismo, onde acusam-se ou debocham-se mutuamente quando recorrem ao Estado direta ou indiretamente. Isso sem esquecer que o próprio Reinaldo de Azevedo já fez uma separação entre “liberais conservadores” e, se não me engano, “somente liberais” em uma de suas declarações gravadas em vídeo. Mas ampliando para fora do Brasil, também me parece que há, sim, uma disputa entre escolas de pensamento liberal – Mises e Rothbard são os mais mencionados.

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  5. Dunker, fui aluno seu na Psico-USP e tenho uma pergunta/provocação:
    Como funciona essa histeria brasileria (me falta o nome inventivo), na qual as pessoas se sentem avessas a irem num evento organizado por uma agrupação política, mas se sentem muito confortáveis indo num evento de uma editora de livros claramente vinculada a certas agrupações? Politizar-se sem deixar-se tocar pela política? Café descafeinado?

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