Carta aberta à classe trabalhadora e aos presidenciáveis

14.09.08_Carta aberta à classe trabalhadora e aos presidenciáveis_finalPor Jorge Souto Maior, Graça Druck, Lincoln Secco, Paulo Arantes, Marcus Orione, Luiz Renato Martins, Flávio Batista, Gustavo Seferian, Luis Carlos Moro.

A terceirização pulveriza a classe trabalhadora, impedindo sua luta coletiva (sindical) e precarizando as suas condições de vida e de trabalho.

Acima de qualquer retórica de que a terceirização se trata de uma reengenharia moderna do processo produtivo, essencial à competitividade das empresas, estando permitida, juridicamente, pelos princípios da livre iniciativa e da liberdade contratual, o fato concreto é que a terceirização, que foi introduzida nas relações de trabalho no Brasil em 1974, pela Lei n. 6.019, ampliando seu alcance a partir de 1993, com a Súmula 331, do TST, que, inclusive, traz a contradição de ter o mérito de restringir a terceirização, só tem gerado sofrimento à classe trabalhadora, sem qualquer benefício concreto à economia nacional, sendo que, juridicamente, fere os princípios do valor social da livre iniciativa, da melhoria da condição social dos trabalhadores, da função social da propriedade, do desenvolvimento da economia sob os ditames da justiça social e da dignidade humana.

Os dados concretos são inquestionáveis: os terceirizados recebem salários mais baixos que os demais trabalhadores; são alvo de um número bem mais elevado de acidentes do trabalho; são vítimas de segregação no ambiente de trabalho, sendo, consequentemente, alvo do assédio moral provocado pela invisibilidade e pela forma descartável como são tratados; constituem a maioria dos trabalhadores resgatados na condição de trabalho análogo ao escravo; são literalmente jogados de um local de trabalho para outro sem qualquer previsibilidade ou critério; têm constantemente alterado o seu horário de trabalho; não recebem direitos básicos e encontram grandes entraves para cobrar esses direitos, seja pela dificuldade da ação coletiva, seja pelos problemas de ordem processual criados pelo numero excessivo de tomadores de serviço ou pela própria precariedade econômica da maioria das empresas de prestação de serviços.

A situação é talvez ainda mais grave no setor público. Primeiro, porque sem o permissivo constitucional a terceirização no setor público representa um sério atentado à conquista democrática do concurso público. Segundo, porque exacerba a lógica da precarização na medida em que a contratação se dá em favor da empresa que apresenta o menor preço (o que, claro, também se dá no setor privado, ainda que de forma não institucionalizada). Terceiro, porque diante das sucessivas trocas de prestadoras, os trabalhadores acabam ficando sem gozar férias (ainda que recebam o valor correspondente), o que pode perdurar por anos. E quarto, por conta do problema adicional de ordem processual, que dificulta a responsabilização do ente público pelo pagamento aos trabalhadores dos direitos não respeitados.

A experiência real da terceirização pode ser verificada nos inúmeros processos que a cada dia tramitam nas Varas do Trabalho de todo o país, assim como nos diversos segmentos em que foi implementada de forma mais ampla.

Ocorre que a compreensão dos efeitos deletérios da terceirização e demais formas de precarização está bastante evidenciada entre os trabalhadores e estes já demonstraram a sua força para, nos últimos anos, barrar os projetos que visavam minar ainda mais os seus direitos, como se deu, recentemente, com o ACE e o Projeto de Lei n. 4.330.

No quadro atual, ademais, a eleição para a Presidência da República é o momento decisivo para que os trabalhadores deixem a postura defensiva a que foram submetidos desde a década de 1990 e passem à luta por melhores condições, que tem como ponto central o fim de toda forma de terceirização, sobretudo porque, surfando na onda da eleição (e da eterna “crise econômica”), alguns segmentos empresariais estão se valendo da sua força exatamente para tentar ampliar a terceirização.

Os problemas em torno da educação, moradia, saúde e transporte são tão relevantes para a classe trabalhadora quanto às garantias para sua ação política e a terceirização é a fórmula básica de uma desarticulação dos trabalhadores.

Sem desprezar outras formas de luta, não se pode deixar de perceber que neste momento o voto representa uma grande arma para os trabalhadores, sendo que o posicionamento dos presidenciáveis a respeito do tema, terceirização, que é propositalmente negligenciado nos debates, deve ser decisivo para a sua escolha.

No Programa de Governo da candidata Marina Silva há uma clara defesa de ideais neoliberais. As posições parecem mesmo reproduções do projeto tucano da década de 90, deixando evidenciada uma prevalência da racionalidade econômica sobre o humano. Ainda que com esforço retórico faça menção à preservação de políticas sociais, o conteúdo ideológico do programa se revela quando, por exemplo, diz que “A formação de capital humano é o nosso maior desafio”, ou quando escora-se no fundamento típico da pregação neoliberal da chamada “abertura de mercados”, que, no fundo, aniquilou a produção nacional e incentivou a especulação internacional. A respeito, o Programa propõe: “Aumentar a competição internacional em todos os setores a fim de forçar a eficiência das empresas brasileiras”.

No aspecto da legislação trabalhista traz a mesma ladainha, utilizada na década de 90 (que já havia sido explicitada no início da ditadura militar), de que as conquistas históricas da classe trabalhadora serão respeitadas: “O Brasil conta com uma legislação trabalhista construída ao longo de mais de 70 anos de história. Ela assegurou vários avanços. Essas conquistas históricas serão preservadas.”

Chega mesmo a reforçar a ideia, apregoando que “Assegurar o bem-estar e a melhoria de vida dos trabalhadores é uma bandeira importante do socialismo democrático… (….) Daí o compromisso com a preservação dos direitos conquistados em anos de luta”…

Mas escorrega na vala comum do neoliberalismo ao reproduzir a velha cantilena de que “É necessário atualizar a legislação”.

E por “atualização”, entenda-se: ampliar a terceirização, no mesmo estilo do que se defendeu na década de 90. A terceirização aparece no Programa, mais de uma vez, como uma espécie de pedra fundamental para o aumento do faturamento das empresas.

Além disso, reitera-se o argumento principal de que os entraves jurídicos à implementação de uma terceirização em larga escala representam obstáculos ao desenvolvimento do país:

“Existe hoje no Brasil um número elevado de disputas jurídicas sobre terceirização de serviços com o argumento de que as atividades terceirizadas são atividades fins das empresas. Isso gera perda de eficiência do setor, reduzindo os ganhos de produtividade e privilegiando segmentos profissionais mais especializados e de maior renda.

Disciplinar a terceirização de atividade com regras que a viabilizem, assegurando o equilíbrio entre os objetivos de ganhos de eficiência e dos de respeito às regras de proteção do trabalho.”

Ou seja, na visão do Programa de Marina, o problema do Brasil são os terceirizados e as entidades que tentam garantir a esses trabalhadores os seus direitos. A solução preconizada é retirar a resistência protagonizada pelo Direito do Trabalho, deixando que, no livre jogo do comércio, com a corda da ameaça do desemprego em virtude de uma infindável crise econômica no pescoço, os trabalhadores abram mão, por sua “livre vontade”, de seus direitos históricos, o que fica ainda mais favorecido sem a resistência sindical, pois a terceirização, como dito inicialmente, pulveriza a classe trabalhadora.

Ou seja, o projeto econômico da presidenciável Marina retroage em 20 (vinte) anos nos ataques às garantias dos trabalhadores, pondo em grave risco a própria economia nacional, que, vale repetir, somente não foi à bancarrota em 2008 por conta da resistência que a classe trabalhadora, com apoio decisivo da comunidade acadêmica e de entidades representativas de magistrados, procuradores e advogados trabalhistas, impôs ao projeto neoliberal no final da década de 90/início dos anos 2000.

É evidente que uma arma decisiva que os trabalhadores possuem para impedir esse retrocesso é o voto. Mas é de todo conveniente verificar o posicionamento dos demais candidatos a respeito desse assunto, pois no governo do PT as tentativas para avançar na terceirização também se apresentaram e estão expressas, inclusive, no projeto de lei, apresentado pelo governo, que regula o SUT – Sistema Único do Trabalho (PL 6.573/2013).

A Presidenta Dilma, é verdade, disse estar muito preocupada com o impacto do programa de governo da presidenciável Marina, “no que diz respeito à terceirização do trabalho no Brasil”.

E asseverou:

“Eu fico muito preocupada e queria dizer que eu não fui eleita para desempregar ou reduzir a importância da indústria, principalmente aquela que pode ser uma indústria que tenha grande absorção de tecnologia e inovação, e não serei reeleita para isso.” (Marina rebate Dilma: “Ela deveria ter medo de não ter o próprio programa”Terra Magazine, 1/9/2014)

Isso, no entanto, é muito pouco para uma definição da classe trabalhadora, ao menos nesse aspecto, em favor da Presidenta, ainda mais diante do histórico recente do apoio de seu governo às tentativas de diminuição das garantias trabalhistas que vieram no ACE e no PL 4.330, destacando-se, ainda, o PL 6.573, já citado.

De todo modo, a Presidenta tem a oportunidade, a partir da presente carta, de explicar qual é exatamente a posição de seu governo com relação à terceirização, sendo que o mesmo se requer, por oportuno, de todos os demais candidatos.

Aguardemos as respostas!

São Paulo, 05 de setembro de 2014.

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Eleições630p

Especial Eleições: Artigos, entrevistas, indicações de leitura e vídeos para aprofundar as questões levantadas em torno do debate eleitoral de 2014, no Blog da Boitempo.

4 comentários em Carta aberta à classe trabalhadora e aos presidenciáveis

  1. A classe trabalhadora, maioria do eleitorado, pre43cisa ficar atenta aos programas formulados pelosw presidenci;aveis e pensar muito ao votar.

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  2. Republicou isso em Professor Doutor Flávio Roberto Batistae comentado:
    Aproveitando o espaço para repercutir manifesto que assinei junto com grandes pensadores das relações de trabalho.

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  3. O que é mais triste não é o cenário eleitoral-laboral do país, mas a indissociável hipocrisia humana que se perpetua ao longo dos séculos.

    Os nossos “responsáveis sociais” são unânimes em abominar a escravidão. Mas não há como deixar de reconhecer que a escravidão é, no mínimo, a absorção da mão-de-obra sem a devida paga.

    Com efeito, o golpe fatal no regime escravocrata, apesar dos vários esforços de melhoria do caráter da sociedade, foi o fato de o escravo não ter poder de compra. Basta ver que quem não consome não tem espaço nesse planeta.

    Paralelamente, se alguém se dá ao direito de exigir a mão-de-obra de outrem sem contraprestação, então no mínimo esse alguém se viu na prerrogativa de subtrair a dignidade de seu semelhante, os demais requintes de crueldade que a história mostra são apenas conseqüências desse espírito.

    Contraprestação não é apenas salário, mas algo que deveria corresponder ao exato número de horas trabalhadas e que faça frente ao esforço e complexidade despendido ou em qualquer outra condição que exija um desforço de energia maior.

    O problema é que se contraprestação fosse pensada dessa forma, não haveria o lucro, calcado na diferença entre o preço da mercadoria e a economia decorrente da limitação ao máximo do custo da produção. Não se pode perder de vista que dentre os elementos que compõem a produção de determinada mercadoria, a mão-de-obra será sempre renovável.

    Portanto, o que realmente moveu a libertação de um escravo não foi a sua dignidade, mas a visão do lucro de seu novo proprietário.

    Dessa forma o escravo sai, mas foi para ficar livre no porão da fábrica, trabalhando incessantemente, com um salário risível. Abaixo à escravidão (será?) foi o grito, mas a dignidade, menos (com certeza!), porque o escravo sabia que era escravo, e, diferente do homem livre, no mínimo tinha alguma coisa pra comer ao final do dia.

    A sociedade organizada ainda se orgulha dessa promoção vazia, marco da evolução humana.

    E a prova de que o escravo não foi libertado pela sua dignidade foi porque somente veio a conquistá-la em alguns momentos quando, na fábrica, resolveu cruzar os braços. Fez se o milagre: o mudo começou a falar, e o surdo, a ouvir.

    Portanto, dentre vários exemplos possíveis, se alguém obriga o seu semelhante a trabalhar em um local insalubre, mas com a mesma contraprestação paga a quem trabalha em condições normais, escravagista ele é, em essência. Mas crise de consciência ele não vai ter, uma vez que junto com seus iguais estabelecerá e frequentará uma religião conveniente, garantindo a paz no além-túmulo ou o conforto transcendental, e porque a sua firma será a mais procurada, já que consegue oferecer o melhor preço, portanto mais capital e, por conseguinte, maior poder de influência e persuasão em relação aqueles que dependem daquele capital, de preferência, e o maior deles, o Estado.

    E é essa essência que se perpetua, com novas roupagens e tratada com modernos eufemismos, mas que, no fundo, nada mais representa do que a vã tentativa do homem de se distinguir perante os seus pares por meio da subtração da dignidade de outrem. Portanto, nem sempre ser uma pessoa ímpar é uma boa coisa.

    E a terceirização? Pior, e a terceirização em país onde a greve, para quem precisa, é uma falácia e, para outra parte é coisa de vagabundo que quer atrapalhar o trânsito? Terceirizado pode se dar ao luxo de cruzar os braços? Terceirizado fala? Ouve? Faz ser ouvido? Não. Terceirizado é invisível. É a perfeita cria do escravo e do recém-libertado, é o capital humano perfeitamente adaptado às obsoletas relações de trabalho modernas.

    Diante das garantias laborais que um dia foram alcançadas neste país, trocando em miúdos, o discurso dos ímpares “presidenciáveis”, e do porvir, sobre qualquer direito trabalhista ou acerca da própria Justiça do Trabalho poderá ser “Procuraremos reparar a ilegalidade que praticamos assim que tivermos atingido o nosso desígnio econômico. Quando se é ameaçado e se luta por um bem supremo, cada qual se governa como pode”.

    É a hipocrisia humana se perpetuando ao longo dos séculos.

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  4. GUALTER DE CASTRO // 24/09/2014 às 3:03 am // Responder

    Muita conversa e pouco resultado do trabalho no fim do mes. Na realidade, toda essa conversa é para trabalhar pouco e receber no fim do mes, ou melhor, ficar com o Bolsa Familia – RECEBENDO SEM TRABALHAR. Ora! Foi nessa conversa que entramos pelo cano com o PT. Agora que estao saindo inventaram essa de COLEGIADOS TRABALHADORES/SERVIDORES, boas-vidas profissionais de sindicatos e colegiados, para ganharem sem trabalhar. Uma TREMENDA BABOSEIRA desses…. AH, CHEGAAAAAAA, BASTAAAA!!!!!

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