A prisioneira

Por Francisco de Oliveira.

Dilma Roussef paga o preço de praticamente ter sido tirada do bolso do colete de Lula da Silva, então em pleno auge de popularidade, sem ter feito o longo e quase sempre desgastante trajeto de militância no PT. Embora eleita sem dificuldades, sua autonomia no governo é precária. Cem dias já decorreram da posse da presidente e ela ainda não conseguiu completar o segundo escalão; o próprio PT e os partidos “aliados” – diga-se empoleirados nos galhos da ampla coalizão que Lula forjou, – se esfalfam para conseguir os disputados lugares, e a presidente titubeia.. Para os áulicos, trata-se de cautela, já que ela mesma declarou que não nomearia ninguém que não tivesse competência técnica, apoiada pela política, para nenhum cargo. Sabe-se agora que Garibaldi Alves é um “notável” especialista em previdência social e Lobão, honrando o nome, “morde” tudo de energia, como mostrou quando ministro da pasta com Lula da Silva.

Ainda por cima, teve que engolir os nomes que Lula da Silva impôs. Dilma se vê às voltas com o chamado “fogo amigo”: seu gabinete dá a impressão de que é a “casa da Mãe Joana”, ou uma novela noir de baixas intrigas. Mantega, mantido no cargo devido aos serviços prestados a Lula da Silva quando este estava no ostracismo, depois de três derrotas para a presidência, e diga-se sem ambigüidades, um raro quadro de caráter dentro do PT, na verdade não formula a política econômica: desde Lula da Silva, são economistas-estrelas do firmamento da especialidade que são convocados periodicamente para orientar a política econômica. Os nomes são bastante conhecidos, e poupo-me de citá-los. Alguns estão no pedaço há mais de 30 anos! Mas Palocci, que não conseguiu voltar à Fazenda, conspira quase abertamente contra o ministro e teve agora a inusitada adesão de Luciano Coutinho, até então discreto à frente dos bilhões que administra autonomamente, e criticou a política cambial nada menos que em reunião com os mais altos membros da plutocracia capitalista no país.

Tanto a incompletude quanto as intrigas são produto e herança de Lula da Silva, que fez a proeza de transformar pobreza em ativo financeiro, isto é, em termos clássicos, vendeu a luta de classes no balcão dos negócios: o fiador dos bilhões transferidos aos detentores dos títulos da dívida pública interna é o Bolsa-Família. A velha fórmula romana do “pão e circo” se atualiza: LCDs das Casas Bahia para o “povão” – foi FHC que disse – e quase 300 bilhões para quem tem títulos da dívida pública interna. Quem vai fazer oposição a essa fórmula mágica?

Do outro lado, na oposição, a confusão não é menor: Aécio, tentando repetir as proezas do seu avô, um político conservador cuja morte o transformou em herói popular, morde e sopra. Prometeu um furacão no discurso inaugural do Senado e saiu uma espécie de “muito pelo contrário”, ou o conhecido “a montanha pariu um rato”. Serra debate-se num eterno “ser ou não ser”, sem nenhuma das qualidades shakesperianas para manter a chamada patuléia (o termo é de Elio Gaspari)em suspense. FHC voltou à carga na semana que passou, com um montão de platitudes, reconhecendo, só agora, passados quase vinte anos de fundação do PSDB, que ele é uma UDN reeditada, agora sem nenhuma chance de voltar ao poder. A velha UDN, desde o início já sabia de seu destino, e logo começou a chamar os militares para lhe darem o poder que os votos lhe negavam. Começou mesmo com o BeloAntonio Eduardo Gomese terminou com o Corcunda do Nosso Drama, chamado também de Castelo Branco que por Ato Institucional cassou a existência da própria UDN e dos outros partidos políticos. Brincar com fogo queima, menino, dizia minha saudosa mãe há décadas.

Nada desse quadro se resolverá com a tão badalada reforma política. A questão é outra: é o tipo de crescimento econômico do nosso capitalismo periférico que colonizou inteiramente a política. Os partidos são a agonia dessa colonização. Não sem base popular: o crescimento econômico acelerado está levando a uma exasperação da luta entre os pobres, que lutam, depois de quatro séculos de abandono, por um lugar ao sol, isto é, por um LCD das Casas Bahia. Há uma degradação imensurável da luta de classes: de um lado, a burguesia transformou-se em gangues, e de outro os pobres, de classe regrediram para a pobreza mesmo; de São Marx para São Francisco. Há uma espécie de fascismo societal no ar. Oito milhões de espectadores assistiram ao Tropa de Elite 2, para se compensarem da frustração de que as Forças Armadas, subindo os morros do Rio, não cumpriram a promessa de liquidar com o crime organizado. Quer dizer, não cumpriram a promessa de acabar com a pobreza liquidando os pobres.

Wellington de Oliveira entrou em sua antiga escola e atirou, não a esmo, como ele já confessou através de vídeos previamente gravados, mas em membros de sua classe social, e, sobretudo, em garotas (é evidente o componente sado-masoquista que Freud explica). Ele não atirouem escolas do Leblon, mas em Realengo.

Viva o Brasil! Deve gritar Lula da Silva agora do alto dos milhares que cobra de empresas que sabem o que estão comprando, que não são as platitudes de Lula, mas o caminho dos fundos públicos.

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Francisco de Oliveira, professor titular aposentado de Sociologia da USP, é autor de extensa obra, da qual destacamos Noiva da revolução: elegia para uma re(li)gião (São Paulo, Boitempo, 2008), Crítica à razão dualista: o ornitorrinco (São Paulo, Boitempo, 2003) e Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita (Petrópolis, Vozes, 1998).  Em 2010, coorganizou a coletânea de ensaios sobre a hegemonia lulista, Hegemonia às avessas (Boitempo), com Ruy Braga e Cibele Rizek. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.

10 comentários em A prisioneira

  1. Este artigo é mais do que prefeito, oportuno e dirigido para as pessoas, sem outro compromisso, que não seja lutar para fazer deste país uma nação decente e digna. Não foi à toa que o se autor abandonou o barco dos petistas, a partir do momento em que descobriu a desfaçatez e a sem cerimônia dessa turma que se encontra empoleirada no poder, de onde não quer sair nunca mais. Esses são os adoradores do poder. Uma gente que sem honestidade intelectual, como Marilena Chauí, vendeu a sua alma ao demônio.

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  2. Fabio Nogueira // 18/04/2011 às 7:34 pm // Responder

    Realmente aguda a percepção da “luta entre os pobres”. Reside aí o potencial crítico da esquerda diante da “racionalização” política das misérias sociais. Potencial crítico, aliás, do qual abdicaram intelectuais outrora comprometidos, se não com o que se chamava antes “emancipação” ou “revolução”, com a tão modesta mas necessária atividade do pensamento crítico e negativo. Há agora intelectuais como Emir Sader, que por mais honestidade de que possa dar prova, foi completamente capturado pela reatualização dos problemas que nossa situação histórica específica impõe. Esse tipo de pensamento capturado apenas consegue lançar fundamentos da velha luta política (então necessária) para o desenvolvimento do velho mecanismo de valorização do capital, agora com o referendo dos explorados. Uma verdadeira derrota travestida de vitória.

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  3. João Carlos Santos // 19/04/2011 às 12:02 pm // Responder

    Não concordo com tudo o que diz o professor Chico de Oliveira, mas é sempre bom ler o que escreve. Aguça a nossa inteligência e a capacidade de pensar. É a Boitempo sempre nos presenteando com ótimos livros e autores.

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  4. Odon Porto de Almeida // 19/04/2011 às 5:13 pm // Responder

    Uma historieta cheia de verdades fala de um burrico que levava imagens para uma orada qualqer.Os ruricolas por onde passava a alimária se desfaziam em gestos de reverência. A certa altura, o animal julgou que todos os salamaleques lhe eram dirigidos. De volta,descarregadas as imagens e diante da ausência de saudações, o asno sentiu-se ofendido e começou a espenear. Em lugar de reverências, era alvo de olhares de reprovação ou coisa pior. Isso sempre acontece com politiqueiros que supervalorizam popularidades imerecidas e falsos carísmas.O povo sempre acorda. Basta surgir um ator mais promissor diante de nossas impropriamente chamadas elites.

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  5. Odon Porto de Almeida // 19/04/2011 às 5:26 pm // Responder

    Conta uma historieta antiga que um burrico levava imagens para uma orada qualquer. Ao transitar pelo campo, os rurícolas se desfaziam em saudações aos santos que conduzia. A certa altura, a alimária julgou que os salamaleques lhe eram dirigidos. De volta, livre de sua carga e ausentes as saudações, o animal começou a espernear e relinchar, recebendo olhares de indiferença e censura do poviléu. Ou até coisas piores. Isso sempre acontece com popularidades imerecidas de políticos astutos, confiantes em seus falsos carismas. As espertas e impropriamente chamadas elites brasileiras logo escolherão ator que melhor lhes sirva, escanteando o outro para o limbo. Assim sempre acontece. E o povo sempre acorda.

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  6. A luta por novas relações de hegemonia se explicita na noção de crise orgânica, igual à crise de hegemonia, crise de autoridade,perda de consenso e da direção da sociedade. A classe dos debaixo sobrevive a um consenso. Pesquiso a evolução (1995-2011) da desigualdade em um ‘Assentamento Precário’ em uma região metropolitana. Parcialmente, as famílias em situação de risco, miséria expressão a percepção de crescimento e atos de cidadania. A parte a lucidez e inteligência do prof. Chico Oliveira, fico em dúvida, sobre sua leitura da realidade. A fotografia do momento aponta outro cenário, num quadro de uma aristocracia dominantes nos grotões. Política é a arte de tornar possível o impossível.

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  7. Carlos Augusto Scansette Fernandes // 02/05/2011 às 6:01 pm // Responder

    O que realmente chama a atenção no prof. Chico de Oliveia é a sua perspicácia intelectual e crítica, sua profunda capacidade de ver a realidade tal como ela é. Penso que a “luta dos pobres” é, na realidade, o desespero dos pobres cujo horizonte esbarra no imediato, sem se darem conta de que o futuro (ou algo assim)já chegou há muito tempo. Na esteira do Agamben, digo que estamos a produzir o homo sacer… produto este que sequer servirá para a troca ou especulação. A questão será: e quando essa produção estiver se esgotando? Pra onde se dirigirão os capitais? É possível pensar num “juizo final”?

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  8. Alberto Magno Barreto Filgueiras // 02/11/2011 às 11:45 am // Responder

    É curiosa a incapacidade do ilustre economista de valorizar devidamente as iniciativas de inclusão, ao contrário do que acontece com Paul Singer. Já a psicanalista Maria Rita Kehl capta com agudeza o processo de incorporação ainda em início das camaras mais miseráveis e desassistidas. Alguma coisa acontece no coração da academia que escapa à nossa limitada compreensão.

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    • Roberto de Souza // 30/11/2011 às 10:40 pm // Responder

      É verdade Alberto! “Alguma acontece no coração da academia que ewscapa à nossa limitada compreensão”. É exatamente o caso de Marilena Chauí que, sem nehum fundamento na realidade do país, pois com certeza ela não depende do SUS e nem vive com setecentos e poucos reais por ~mês, teve a desfaçatez de dizer que o governo Lula criou direitos pasra todos. Foi o que ela disse num vídeo postado no youtube. Esta lá para quem quiser ver! Está filmado! Ou será uma miragem minha?! Chico de Oliveira tem honestidade intelectual e argúcia nas suas análises, principalmente no tocante ao papel dos sindicatos (CUT, entre outros) hoje como ‘gestor’ dos fundos públicos no BNDES (a “nova classe”, nas palavras do professor Francisco de Oliveira). Marilena Chauí, que já foi combativa e pensava de verdade, deixou de pensar e passou a racionalizar a pseudouniversalização dos direitos sociais no Brasil. Como se dizia antigamente, Marilena virou uma pelêga de maracaq maior!!!!

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  9. Esse Prof Chico de Oliveira é de uma lucidez rara no brasil q se debate em estatísticas de progresso social q escondem sob nuvem de números agrupados sob progresso de classe media nova de ate 2000 reais , a realidade de q aqui nada funciona nem educação saude previdência policia justca estradas aeroportos barcas trânsito . Muito menos políticos q esclareçam ao povo sua situação periférica vivendo num miséria urbana analfabeta sob mitos de felicidade tecnológica álcool e drogas. Um perigo ronda a sociedade pôs milagre lula.: a verticalizacao fascista. Obrigado espero receber notícias atualizadas do professor Oliveira

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