Divagações sobre cachorros e sobre o assassinato de Trotski

14.03.06_Mouzar Benedito_PaduraPor Mouzar Benedito.

Gosto de animais em geral, mas numa época tive uma birra com pessoas que têm um apego exagerado aos cachorros. E esse sentimento me veio à memória enquanto lia O homem que amava os cachorros, do cubano Leonardo Padura, uma história de ficção apoiada em fatos e nomes reais.

Não é novidade para mim, e acredito que para nenhum leitor do blog da Boitempo, que Ramón Mercader, um catalão a serviço de Stalin, assassinou Leon Trotski no México. Uma picareta de alpinista foi o instrumento do assassinato. Direto na cabeça de Trotski, que não morreu na hora, chegou a lutar com o agressor.

Mercader amava os cachorros. Trotski também amava os cachorros. Então, amar os cachorros não é característica exclusiva de stalinistas nem de trotskistas.

Assim como o autor usou essa coisa de amar cachorros para dar o nome ao livro, eu acho que posso, antes de falar do livro propriamente, fazer um intervalo para lembranças sobre coisas que me levaram a ter birra não contra os cachorros, mas contra alguns de seus donos, durante um bom período.

NOVA RESENDE, PARIS, RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO

Quando criança, uns amigos e eu éramos como donos de um cachorro de rua a que demos o nome de Danúbio. Tínhamos um assobio para chamá-lo onde estivéssemos, e qualquer um de nós que assobiasse de uma forma especial que treinamos atraía o animal simpático e brincalhão.

Então, não tenho traumas de infância sobre isso, embora não gostasse de um cara que tinha um pastor alemão, de nome Rex, que atacava as pessoas e vivia solto nas ruas.

Depois disso, a primeira vez que peguei uma certa antipatia por donos de cachorros tem a ver com gente e lugar que não conheci. Muitos amigos que estiveram exilados na França me contavam do tratamento pra lá de amável que os franceses davam aos cães, enquanto as crianças mesmo não eram tão bem tratadas assim. Dois amigos meus estavam em Paris, lá pelo fim dos anos 1970, e quando chegaram aqui me contaram que viram uma mulher andando pela calçada, acompanhada de um menino com uns 5 anos de idade e um cachorro mais ou menos pequeno. Quando foi atravessar a rua, ela pegou o cachorro no colo e foi dando tapas na cabeça do menino para ele andar depressa. Um desses meus amigos deu uma bronca na mulher e quase apanhou de franceses que viram tudo e disseram que ele não tinha nada com isso, que era justo tratar o cachorro e o menino daquela maneira.

Em seguida, fui morar no Rio de Janeiro, no bairro do Leme. Lá e em Copacabana, ao andar pela calçada da avenida que beira a praia, tinha que ir olhando para o chão, para não correr o risco de pisar em merda de cachorro. Um dia, tomava um chope numa mesa da calçada do restaurante Fiorentina, veio um homem com um cachorro grandão, ocupou a mesa ao lado e pediu chope também. Logo em seguida, veio uma mulher passeando com outro cachorro grandão, e seu animal a puxava para perto da mesa do meu vizinho. Ela o acompanhou. Um cachorro ficou cheirando o outro, ela alisou o bicho do homem que estava sentado e falou para o seu: “É seu amigo, fulano”. O homem alisou o cachorro dela e falou algo para o seu próprio cachorro. Ficaram ali uns cinco minutos, ela falando com o cachorro dele e ele falando com o cachorro dela. Não conversaram entre eles. Um só falava com o cachorro do outro.

Aí, pensei: “Gente que gosta exageradamente de cachorro, não gosta de gente”.

Em São Paulo a coisa começou mais tarde. Muita gente tinha cachorro mas eu achava “normal”. Até que num churrasco alguém levou um cachorro enorme, que pra começar bateu as patas no peito de um menino, derrubando-o de costas. Ele destampou a chorar e o dono falou bravo como se ele estivesse cometendo um crime: “O cachorro só está brincando”. Os próprios pais deram uma baita bronca no menino. Aí o cachorro saía correndo, pisava no barro (tinha chovido) e vinha com a brincadeira de bater as duas patas dianteiras no peito das pessoas. Quando falei pro dono que não queria que seu cachorro fizesse aquilo comigo, ele ficou indignado, pensando como é que alguém podia não aceitar uma brincadeira de cachorro. Respondi que se uma pessoa sujasse a mão de barro e batesse no meu peito eu ia no mínimo xingar o sujeito. Por que um cachorro pode ter esse direito de sujar a roupa dos outros? Fiquei malvisto ali.

Aí tem muitas outras histórias, mas concluí que as coisas ficaram esquisitas demais num domingo em que andava pelas ruas arborizadas do bairro, ouvindo rádio. Estava acontecendo uma manifestação em várias cidades brasileiras, em defesa dos animais. Na emissora que ouvia, entraram repórteres falando direto do Rio, de Belém, de São Paulo e de não sei onde mais. Gostei, embora estranhasse que “os animais” nessas manifestações eram quase só cachorros, aparecendo algumas vezes alguém com um gato, ou falando de gatos. Depois de cerca de meia hora cobrindo a manifestação pró-animais, com repórter entrando ao vivo de um monte de lugares, dando voz aos militantes da causa, uma outra notícia: a polícia, apesar de ter garantido que isso não ia acontecer, invadiu o lugar denominado Pinheirinho, em São José dos Campos, para expulsar seus milhares de moradores. Não havia repórter nenhum lá, e leram apenas uma nota com a versão da polícia sobre o acontecido. Só pude ironizar, falando sozinho: “Eu não sou cachorro, não. Que pena!”.

O certo é que o verdadeiro culto aos cachorros hoje em dia me faz pensar que certas pessoas não são donas de cachorros, os cachorros é que são donos delas.

QUANDO O PARTIDO ERA DEUS

Volto ao livro. Não esperava me impressionar com o seu conteúdo, apesar do volume de quase seiscentas páginas. Mas confesso que balancei um pouco. Ele intercala histórias de Trotski já preso, das vésperas do exílio até sua morte no México, da Guerra Civil Espanhola e da trajetória de Ramón Mercader desde criança, até depois que saiu da prisão e viveu na União Soviética e em Cuba.

É impressionante a forma com que se “faz a cabeça de alguém” para cometer um crime achando que está fazendo isso para o bem da revolução, do proletariado e de toda a humanidade. Um assassinato cruel é imaginado como um ato de heroísmo.

Mesmo pessoas com uma cultura vasta podem ser manipuladas. Perde-se o sentido crítico, a humanidade, a dignidade…

O PCB teve uma fase em que a obediência ao partido – que muitas vezes era a obediência a Stalin – era um dogma.

Lendo a história de alguns comunistas que para mim – apesar de eu nunca ter militado no Partidão ou no PC do B – são paradigmas da entrega a uma causa, sempre fico admirado com a dedicação deles ao partido, considerado quase sempre infalível. São pessoas que admiro, como Pedro Pomar, Carlos Marighella, Gregório Bezerra, Vladimir Pomar e Apolônio de Carvalho. Mal acabavam de fazer um grande trabalho a mando do PCB num lugar, sob condições muito difíceis, eram mandados para outro e iam sem vacilar. Na maioria das vezes por conta própria, mudando de nome (inclusive dos familiares), começando tudo do zero de novo em algum lugar. Arriscavam a vida sem contestar ou pôr em dúvida a decisão do Partido, para cumprir uma tarefa.

Apolônio foi lutar pela república na Guerra Civil Espanhola e, acabada a luta ali, com a derrota para os fascistas do general Francisco Franco, atravessou para a França e foi lutar na Resistência contra o nazismo.

Acredito que era um tendência geral de uma época, essa disciplina militante, essa crença, essa entrega total a uma causa. Não era só no Brasil. No livro de Padura, isso aparece com clareza na história de Mercader e também a de Trotski e em quase todos os militantes envolvidos nos acontecimentos da época.

A Guerra Civil Espanhola foi um campo de experimentos. Hitler testou ali armas de execução em massa, promoveu bombardeios como o que arrasou Guernica, e do outro lado, sem comparar os efeitos e os métodos, houve um monte de desavenças entre comunistas ligados ao PC, trotskistas e anarquistas, além de republicanos “comuns”. Nos lugares governados pelos republicanos, havia muita disputa interna entre as tendências.

Trotskistas e anarquistas propunham que a guerra civil fosse também uma revolução, mas o Partido Comunista – que tinha entre outros líderes Dolores Ibárruri, conhecida como “A Passionária”, e Santiago Carrillo – era contra, queria apenas manter a república, sem mudar o sistema econômico. E isso era motivo para refregas internas entre os republicanos.

Li livros espanhóis que acusavam o PC espanhol de mandarem assassinar muitos trokstistas e anarquistas empenhados na luta contra Franco, acusando-os de serem franquistas infiltrados. No livro de Padura, a história aparece inicialmente como se a desavença entre as tendências republicanas fosse geral, com sacanagens de todos os lados, mas acaba mostrando as manipulações do PC, orientadas por agentes de Stalin, incluindo os tais assassinatos, como o do trotskista Andreu Nin, líder trotskista de Barcelona. Para Stalin, ao que parece, não interessava ganhar a guerra se o controle da Espanha republicana não ficasse sob o comando do PC.

Fico pensando em pessoas como Apolônio e até mesmo em Ernest Hemingway (autor de Por quem os sinos dobram, belíssimo livro sobre a luta na Espanha), que lutaram honestamente pela República. Como teriam se sentido ao saber certas verdades por trás da sua luta – que, repito, teve mesmo muito heroísmo e muita fé em ideias libertárias.

A história nos conta que quando vieram à tona os chamados “crimes de Stslin”, em 1954, foi um arraso. Aqui no Brasil, alguns abandonaram totalmente seus ideais. Jorge Amado não só saiu do PCB como mais tarde se tornou um adepto de ACM, o fatídico Antônio Carlos Magalhães.

Marighella, contam, chorou muito. Mas continuou na luta, entendendo que os desvios de conduta do homem em quem acreditava não comprometiam o principal.

Enfim, a leitura de O homem que amava os cachorros mexe com a cabeça da gente. Tem muitos detalhes, muitas histórias de um tempo de paixões políticas dominando corações e mentes, e é interessante e trágico ir entendendo como se forjou, a partir de um jovem idealista, um matador cruel. O próprio autor, em alguns momentos, vacila entre o ódio a ele e a sensação de pena.

Não sei se indicaria o livro para todo mundo. Para alguns não muito estruturados e para quem procura motivos para não acreditar que o mundo pode ser bem melhor sem o capitalismo, seu conteúdo pode ser uma desculpa, tipo “o socialismo leva ao autoritarismo etc.”. Mas para alguns que acreditam sempre no “grande chefe”, seja quem for, acho que ele mostra que as coisas não são bem assim, que eles falham, têm manias, medos, pretensões de poder absoluto e por aí vai. Sentem-se deuses. Não será o caso de pensar se certas figuras do nosso tempo não se parecem um pouco com isso?

Para finalizar, só mais uma coisa da Guerra Civil Espanhola, a palavra de ordem da Passionária, que mexia com todo mundo, resistindo às tropas franquistas em Madri: “Não passarão!”. Foi muito repetida e de vez em quando a escuto ainda, às vezes na versão original: “No passarán!”. Quando estou numa briga e escuto isso, caio fora. É uma maldição para a esquerda, são raras as vezes em que esse lema deu certo. Quase toda vez que se grita “Não passarão!” ou “No passarán!”, a direita passa atropelando, como passou em Madri. Por favor, militantes, não gritem isso.

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O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, já está disponível em ebook, por metade do preço do impresso aqui. Confira o Booktrailer e o debate de lançamento do livro, com Frei Betto, Gilberto Maringoni, Osvaldo Coggiola e Valério Arcary, abaixo:

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

4 comentários em Divagações sobre cachorros e sobre o assassinato de Trotski

  1. Carlos J. R. Araújo // 11/03/2014 às 5:53 pm // Responder

    Meu caro Mouzar, para mim, hoje, que vivo num inferno da “cachorrada” uivando num prédio de apartamentos, há um verdadeiro culto ao cachorro. Eu tenho duas explicações para esta “loucura”: uma a de que o cachorro doméstico existe para preencher o vazio cultural, social e humanitário do dono do cachorro; e outra, permita-me a gozação, aproveitando a notícia de uma pesquisa/estudo sócio-psicológico(!) de cientistas de Harvard, onde se concluía que o cachorro se parece psicologicamente com o dono, na gozação, eu digo o contrário: é o dono que se parece com o cachorro. Simples: são irmãos, apenas de espécies diferentes. Daí o amor mútuo entre eles.

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  2. Laura Jardim // 12/03/2014 às 2:29 pm // Responder

    Mouzar,

    não me ajudou muito a falta de comentários sobre a qualidade literária em si do livro.

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    • Mouzar Benedito // 12/03/2014 às 5:54 pm // Responder

      Oi, Laura,
      O texto é mesmo mais uma crônica do que uma crítica literária.
      O livro é bem escrito e tem muitas informações. Sua leitura é cativante, vale a pena.

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  3. Também não gostava de cachorros, e no meu caso foi por nunca ter convivido com um na infância, depois de grande cheguei a loucura de ter 22 ao mesmo tempo. Não foi uma atitude muito esperta! Hoje tenho 5 e aprendi a ser dona de cachorros e também um ser humano normal. Você tem toda razão, muitos donos de cachorros são pessoas com probleminhas…rs
    Mas cachorro em si é tudo de bom! Adorei teu texto.
    Gostaria de aproveitar a oportunidade e convidá-lo para conhecer meu blog, sou ilustradora e apaixonada por cachorros.
    Bjs
    Amanda
    http://www.blogdocachorro.com.br/

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